A desigualdade mata: chamado à ação

A atual pandemia de Covid-19 tem não apenas colocado em evidência como também acirrado ainda mais as desigualdades extremas do Brasil. De acordo com dados da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, a probabilidade de morrer de coronavírus é três a dez vezes maior nas periferias do que nas regiões centrais da capital. Seja por impossibilidade de seguir as medidas de isolamento social (já que precisam continuar trabalhando ou porque vivem em moradias mais densas ou precárias), seja por ter mais dificuldade de acessar serviços de saúde, os mais atingidos são justamente aqueles que já estavam em situação de maior vulnerabilidade social. E, quando adoecem de forma grave, são os mais vulneráveis que têm menos acesso aos tratamentos necessários para salvar suas vidas. Três quartos dos brasileiros não têm plano de saúde, dependendo inteiramente do SUS, mas apenas metade dos 55.101 leitos de UTI do país são do sistema público. Ou seja, a outra metade dos leitos está reservada ao quarto da população que tem acesso a hospitais privados.

A dificuldade no acesso à saúde também atinge desproporcionalmente a população negra. Quase 70% dos que dependem exclusivamente do SUS se autodeclaram negros, e dados do Ministério da Saúde indicam que o Covid-19 tem sido significativamente mais letal entre essa população, seja pela dificuldade de acessar serviços de saúde ou pela presença anterior de co-morbidades já resultantes de desigualdades. Em São Paulo, o risco de morrer de coronavírus é 62% maior entre negros, se comparado ao da população branca.

Populações indígenas também estão sendo expostas ao vírus por causa do garimpo e outras atividades ilegais em suas terras. De acordo com estudo da Unicamp, 13 terras indígenas têm vulnerabilidade considerada crítica, e 85, vulnerabilidade intensa, sendo que cortes recentes no sistema de atendimento básico de saúde como o Programa Mais Médicos diminuíram drasticamente o número de profissionais de saúde atuantes nesses territórios.

Ademais, segundo estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, a distribuição desigual dos leitos públicos pelo território nacional significa que quase 15% da população brasileira dependente do SUS não conta com leitos de UTI na região em que reside. No Amazonas, por exemplo, só há unidades de tratamento intensivo na capital, Manaus, onde a ocupação de leitos de UTI para covid-19 já chegou a 100%. Situação semelhante ocorre em Belém.

As desigualdades sublinhadas e intensificadas pela pandemia não se restringem ao terreno da saúde. Segundo estudo do Cebrap, as mulheres e a população negra são os mais atingidos pela crise do coronavírus por já estar em situação mais desfavorável, representando a maior parte dos trabalhadores informais ou trabalhando nas atividades econômicas mais afetadas pelas políticas de isolamento social. Desigualdades educacionais também estão sendo acirradas, já que crianças que habitam em moradias mais densas e com menos acesso a equipamentos eletrônicos e à internet são desproporcionalmente afetadas pelo fechamento das escolas. Além disso, seus pais têm menos disponibilidade para ajudá-las com as tarefas, já que grande parte deles precisa continuar trabalhando fora de casa.

O fato é que a crise do coronavírus apenas torna mais evidente um quadro crônico de desigualdades extremas. Apesar de a Constituição determinar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil seja "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" e de termos conseguido atingir alguma redução em nossos índices de iniquidade nos anos 2000 e início dos anos 2010, nunca chegamos a abandonar o grupo dos países mais desiguais do planeta. A nossa estrutura econômica e tributária, assim como uma série de políticas públicas e de ações da sociedade resultaram numa extraordinária concentração de renda, riqueza e poder. 

 As nossas desigualdades estão estruturadas a partir da intersecção do racismo e da opressão de gênero, além da exclusão de grupos vulneráveis, tais como idosos e pessoas em situação de pobreza e com deficiências. Elas geram conflitos, violência e exclusão social, eliminando a possibilidade de resgatar valores básicos e fundamentais de diversidade e equidade, e impossibilitam o crescimento econômico sustentável e a construção de uma sociedade inclusiva e igualitária. E, nos últimos anos, a tendência de queda da iniquidade não só estagnou como vem se revertendo.

Mesmo antes da pandemia, o país já vivia um momento de retrocessos sociais, políticos, ambientais, econômicos e culturais em grande escala e intensidade. Ultimamente, mesmo os pequenos avanços conseguidos nas últimas décadas têm desaparecido de forma veloz. As perdas ocorrem em todas as direções, aumentando a pressão sobre a sociedade civil e os movimentos sociais e culturais das cidades e dos territórios rurais. Estão sob ataque: a população negra e LGBTQI+, as mulheres, as comunidades tradicionais e quilombolas, os povos indígenas, as periferias urbanas, os sindicatos, a imprensa, as universidades, a ciência e até mesmo a diversidade de pensamento e de posições políticas.

No que diz respeito à crise do coronavírus, medidas como o auxílio emergencial proposto pelo Congresso e aprovado pela Presidência em abril, apesar de bem-vindas, não são suficientes: dificuldades no cadastro por falta de acesso a internet ou irregularidades no CPF impossibilitam que justamente os mais necessitados acessem o benefício, cujo valor é ainda menor que o salário mínimo já defasado. Para enfrentar tamanhas desigualdades, é preciso ampliar o financiamento do Sistema Público de Saúde e rever a PEC do Teto de Gastos, entre outras medidas imediatas, mas também repensar qual será a economia que queremos na pós-pandemia, tal como têm feito um grupo de países e empresários europeus: revendo, por exemplo, a nossa política tributária e intensificando medidas redistributivas, e refletindo sobre quais devem ser os objetivos do nosso desenvolvimento econômico.

Acreditamos que esta situação de desigualdades crônicas só poderá ser transformada por meio de ações e do engajamento de todas e todos nós. Conclamamos, portanto, as organizações da sociedade civil, os poderes públicos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, nos níveis federal, estadual e municipal, escolas e universidades, meios de comunicação, organizações sindicais, artistas e agentes culturais, atletas e organizações esportivas, empresas, instituições religiosas, lideranças e formadores de opinião, cidadãs e cidadãos brasileiros a colocar a redução das desigualdades como a grande prioridade das políticas públicas e ações da sociedade. Só assim, e insistimos, só assim poderemos ter um Brasil próspero e com qualidade de vida para todas e todos.

As nossas desigualdades são anticonstitucionais, injustas e matam.

Juntas e juntos, poderemos reduzir as desigualdades para que o Brasil deixe de ser eternamente o país do futuro e seja finalmente o país do presente.